NEGRO ROM

NEGRO ROM
INICIATIVA QUE RECONHECE A DIFERENÇA

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - 7ª Parte (FINAL)

Carla foi levada para casa pela própria diretora e, do interior do carro, olhava os homens armados que impediam o direito dos homens desarmados ir e vir, vir e viver. Num esforço descomunal, verteu lágrimas como sacrifício em favor dos pecados do mundo. Ela como que
torcia sua retina em busca de mais algumas gotas de lágrima. Já havia chorado muito naquele dia, parecia não ter mais gota alguma de lágrima em seus olhos. Sentia-se cansada. Não lutaria mais contra o mundo á sua volta. Sentia-se pronta para conformar-se com o mundo à sua volta
passivamente. Chegou á conclusão que sua luta muda contra o sistema, inevitavelmente, resultaria em derrota.

Ao descer do carro na entrada da comunidade onde morava, não queria ter de responder perguntas sem sentido, e mesmo que estivesse decidida reagir ao mundo de forma passiva, poderia começar a agir assim no dia seguinte. E, quando os bandidos puseram-se em seu caminho e lhe perguntaram “em quê o movimento de contracultura tinha contribuído
para o pensamento de responsabilidade social das empresas transnacionais”, Carla não suportou a hipocrisia do mundo e deu um grito com todas as forças que lhe restavam. Libertou de uma só vez toda a insatisfação de ser cerceada no que tinha de mais precioso, sua liberdade. Sua insatisfação quase se fez um objeto concreto ao atingir os homens armados parados á sua frente.
- Saiam da minha frente, seus abutres! Não responderei ás suas perguntas descabidas! Monstros! Imbecis! Entrar em minha própria casa sem dar satisfações é meu direito! Nunca mais vou responder pergunta alguma! Liberdade ou morte!

No momento em que estas palavras foram articuladas pelos músculos na garganta de Carla, a terra parou em seu eixo e, junto com ela, pararam todas as pessoas que passava ali naquele momento. Todos ficaram na expectativa de verem como seria a reação dos facínoras. Algumas
mulheres de idade indefinida com lenços coloridos na cabeça e vestido de chita começaram a chorar e se bater em lamento, como aquelas matronas do Oriente Médio, na verdadeira Faixa de Gaza, que choram e se batem quando o exército de Israel mata seus jovens, que segundo elas, não tinham envolvimento com o terrorismo. As mulheres daqui sofriam por antecedência o fim, que davam como certo, da pobre mocinha que ousava desafiar o tráfico. Mas, sabemos que lei é lei, e nenhum meliante ali seria tolo o bastante para desobedecer a uma lei do chefe do tráfico. Assim, nada aconteceu. Nunca mais pararam Carla ao entrar ou sair da comunidade. Era do grito de liberdade que ela precisava para que o nó que sentia na garganta fosse desfeito. De certo que tudo o que podia conseguir era uma pseudoliberdade amorfa, mas, já era algum começo. Melhor uma liberdade ilusória do que nenhuma esperança.

Os dedos indicadores e mandíbulas continuaram a visitar os sonhos de Carla por muito tempo. Os zumbis de jaleco se tornaram monstros cada vez mais pavorosos, e ela acordava desejando nunca ter ido ao Anatole naquele dia fatídico. Anatole, Anatole! Pobre Anatole! Pequeno entre os grandes e eternamente relegado ao esquecimento. Nunca sairá de ti um doutor em literatura francesa, por exemplo. Mas, como já disse uma vez alguém muito especial: “improvável não é impossível!” Quem sabe algum dia Carla não mais sonhe, e homens não mais morram!

Dedicado à Eliane Costa.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - 6ª Parte


A diretora era uma mulher de rosto redondo, mas, bela. Embora
estivesse envelhecendo e as marcas da passagem do tempo estarem se fazendo bastante visíveis, ainda era bastante sensual. Usava óculos como todos os professores deste mundo, e conseguia passar muita
confiança e ser persuasiva ao falar. Ao mandar Carla levantar-se e ir até o banheiro, conseguiu ser persuasiva. Disse que era para ela melhor recompor-se, e ir para sua casa, pois naquele dia não haveria aulas. Disse, também, que não se preocupasse com as horas do estágio, ela assinaria como se aquele tivesse sido um dia normal.

Quando saiu do gabinete, um dos sacripantas que a assustou ao vir em sua direção com um pequeno saco transparente com um dedo sujo de sangue dentro, desculpou-se pelo susto que lhe dera e lamentou o fato de que ela veio a desmaiar. Carla aceitou as desculpas, não era culpa do homem o fato de ela não estar preparada para ver um dedo decepado. Se o corredor estava mal iluminado, isso também não era sua culpa. Carla ainda estava meio tonta, e ao andar pelo corredor do colégio, mesmo que o prédio tenha passado por reforma recentemente, parecia que ela via musgo e infiltrações que vazavam água continuamente no teto e nas partes superiores de ambos os lados do corredor. Era como se tivesse entrado em um outro mundo, e nesse mundo estranho, a luz originava-se de velas em candelabros de cobre. As velas, com suas chamas bruxuleantes que deformavam todos os objetos que tocavam, produziam, pelo seu halo projetado nas paredes, sombras ameaçadoras num tom que misturava azul da Prússia com terra de Siena queimada.

A jovem sentia medo e questionava-se quanto a se dar o próximo passo era algo sensato. Sentia o suor escorrendo por seu rosto e por suas pernas. O seu coração estava acelerado. Seus olhos tentavam compensar a miopia, o astigmatismo e a escuridão por se dilatarem. Não sentiu o susto precursor do desmaio e, por este motivo, deu um passo incerto rumo à escuridão que se pronunciava infinita e inevitável. Antes de dar mais um passo, pensou que cairia num buraco, talvez numa masmorra. Pensou que estava num velho castelo medieval. Mas, resolveu dar o passo, posto que já fizera este percurso da sala da diretora até o
banheiro dos professores infinitas vezes e nunca, nem uma única vez, reparara na escuridão, no musgo, nos vazamento ou nas velas. Decidiu que não devia confiar completamente em seus olhos, e deu o passo rumo à escuridão infinita. Se viesse a cair, era porque sonhava, e se
estivesse sonhando, acordaria deste pesadelo em sua casa, com toda a proteção que uma cama pode proporcionar.

Ao dar um passo após outro adentrando na escuridão, Carla percebia que a luz, ou o alcance dela, era ritmado pelos seus passos. Á medida que dava um passo à frente, a escuridão retrocedia, também, um passo. Consequentemente deu um passo após outro, dançando pelo corredor, forçando a luz a bailar com ela no ritmo que escolhesse. Um passo em salsa, outro em valsa, um terceiro em bolero ou ragtime.

Ao chegar ao banheiro não mais sentia tanto medo quanto antes. Abrindo a porta, sentiu um cheiro ocre, que por um segundo associou ao odor do vinagre, mas, no segundo seguinte, desconfiou que não era exatamente vinagre o cheiro que sentia. Não havia muita luz no banheiro e Carla abriu a porta com a mão esquerda e, sem demora, com a mão direita
tentou encontrar o interruptor que faria o favor, se alcançado, de iluminar todo o espaço ali. Não encontrou. “Coisa estranha. Havia um interruptor aqui ainda ontem, ou antes de ontem, já não lembro exatamente de mais nada.” – Pensou ela. A luz que entrava pela janela era parca e não iluminava quase nada. O chão do banheiro estava molhado, dava para ver o reflexo da luz que entrava pela janela refletindo no líquido no chão. Carla sentiu nojo, pois não sabia se a água era limpa ou suja, deveria ter cuidado para não sujar-se. Dava pisadas cautelosas no chão, como que pisando em ovos. Forrou cuidadosamente e com delicadeza o assento do vaso sanitário com papel higiênico. O odor nauseabundo do vinagre, ou de alguma outra coisa que não conseguia identificar, ficava mais forte ao passo que o banheiro ficava mais iluminado. O cheiro fez com que sua boca salivasse, o que aumentava o desconforto e impedia que fizesse suas necessidades com rapidez. Com a demora, teve mais tempo para
deslocar seus olhos míopes pelo banheiro, prestando mais atenção nos detalhes que anteriormente eram ocultados pela escuridão.

Levantou-se, pegou um tanto de papel e secou-se. Olhou ressabiada uma massa disforme que estava num canto do banheiro, em baixo da pia. Parecia ser lá a origem da água no chão e o odor de vinagre. Levantou a calcinha, abaixou a saia e ajeitou-se. Deu um passo em direção à
pia, fixou o olhar e, sim, teve a certeza que o que estava vendo era uma dentadura. “Achei um sorriso! Mamãe, achei um sorriso!” – Pensou ela, lembrando da pitoresca história da menina que achou uma dentadura e, em sua inocência, pensou ter achado um sorriso.
Mas, havia alguma coisa estranha com aquele sorriso. Estava sujo e enrolado no que parecia ser um pano de chão igualmente imundo. A luz que entrava pela pequena janela, iluminava preguiçosamente o pequeno banheiro. Carla, querendo aproveitar melhor a luz, tirou os óculos para limpá-los e assim poder examinar detalhadamente o sorriso que estava vendo ali no chão, bem á sua frente. Teve a impressão que o sorriso era para si. Depois de limpar bem os óculos, pensou que finalmente poderia ver o que havia ali. Recolocou-os com cuidado e assustou-se ao reconhecer uma mandíbula humana e uma arcada dentária completa. Fechou os olhos, mas, infelizmente, a imagem já havia sido capturada por suas retinas e jamais iria permitir que voltasse ao Anatole.

Haviam serrado, provavelmente com uma serra de cortar ferragens em construção civil, a cabeça de um rapaz na altura do nariz. Não avistara lábios e a pele da face havia sido retirada. Uma das orelhas estava pela metade, enquanto a outra estava intacta. Carla vomitou o que havia comido no café da manhã. Saiu correndo do banheiro e gritou por socorro, com todas as forças que haviam ainda em seu corpo. A primeira pessoa a atender seu pedido de socorro foi Rita de Cássia, a faxineira do colégio, que a abraçou maternalmente.

- O que foi minha criança? Não tenha medo, você não está mais sozinha.
- É horrível! É horrível! Lá no banheiro tem... – Calou-se, sem saber descrever exatamente o que acabara de ver. Dona Rita a deixou no chão do corredor, recostada na parede. A diretora, policiais e outras pessoas estavam se aproximando quando Rita entrou no banheiro para ver o motivo dos gritos, mas, saiu quase no mesmo instante gritando, desesperada, “Cruzes! Cruzes!” Ela não conhece latim, e mesmo se conhecesse, dificilmente sairia gritando
“Stauros! Stauros!” Mais ou menos no mesmo instante, num outro ponto daquela comunidade, o
dono da boca de fumo ordenou que tudo aquilo deveria parar.

- Não quero mais nenhum morto na minha comunidade. Um morto trás, em média, uns dois policia. Se o morto for um policia, ele trás uns dez outros policia e eu não lucro nada. Ninguém lucra com uma guerra na comunidade, nem a polícia nem eu. Ninguém sobe um morro pra comprar bagulho, pra gastar dinheiro, com medo de ser grampeado pela polícia ou com medo de levar um tiro na cabeça numa guerra de facção. Quem me desobedecer vai ser desovado no lixão. Espalhem essa noticia pra tudo o que é vagabundo, eu quero paz. Ninguém vai morrer na minha comunidade.

Simples assim, por decreto, a morte foi abolida na comunidade onde se localiza o colégio Anatole France. Para isso, até uma trégua foi feita com a outra facção. A notícia foi espalhada velozmente. Cada homem, rapaz ou menino que ouviu estas palavras foi contá-las para o primeiro homem, rapaz ou menino que encontrou pela frente. Esta corrente continuou a crescer até o ponto em que todos os seres vivos nas duas comunidades sabiam de todas as vírgulas da sentença.

No interior do colégio a mandíbula dentro do saco plástico parecia sorrir e, se sorrir fosse mostrar os dentes, era exatamente isso que faziam aqueles 30 dentes ensangüentados. Sorriam debochando de uma sociedade que já ultrapassou a barreira entre selvageria e civilidade há muito tempo, mas que não tinha coragem o bastante de admitir este fato.

Em breve:
* A 7ª parte (e última) da história de Carla Camuratti, por Peu.
** Mais uma crônica "desafinada" de Adriano C. Andano.
*** E uma edição inédita da "Animalia Sensual", por El Bailaor (quase pronta!!)
.

terça-feira, 11 de maio de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou um Sorriso - 5ª Parte

A rua era estreita e terminava num beco sem saída para carros a pouco mais de trinta metros após a entrada do Anatole France. Eram quatro ou cinco carros, contando com os carros dos legistas, que fechavam a rua não permitindo que outros carros tivessem acesso ao final dela. Nos telhados de alguns casebres ao redor do colégio, várias outras aves de rapina apontavam seus fuzis e metralhadoras para os policiais que esperavam nos carros. Quatro policiais entraram no colégio junto com os bombeiros, enquanto dois ficaram do lado de fora, um em cada carro.

Sentiam medo e encolhiam-se por estarem acuados dentro de veículos frágeis, que não apresentavam nem sequer uma sombra de proteção contra todos aqueles armamentos à sua volta. Ademais, os policiais sabiam que estavam em uma emboscada. Simplesmente não podiam acreditar como seis homens experientes, acostumados a subir morros, foram cair nessa
furada de entrar numa favela para acompanhar bombeiros e legistas. Na verdade, não entendiam nem mesmo por qual motivo se precisava de legista num crime como esse.

Sentiam-se como o rato na fábula de Kafka que corria desesperado para uma ratoeira no fim de uma sala onde duas paredes se encontravam e, no ponto privilegiado da armadilha, cantavam baixinho e tamborilavam com os dedos na porta dos carros. Não admitiam um para o outro o medo que sentiam, mas, era tanto que nem sequer ousavam ficar conversando em pé
fora dos carros. Eram dois policiais cercados por bandidos por todos os lados. Todo palco estava preparado para uma grande tragédia, e seria uma tragédia não terminar assim o dia. Era inevitável que o gato kafkiano lhes desse a sugestão de mudar de lado, para que eles
fugissem da ratoeira, só para devorá-los.

Havia pouco tempo que Carla estava estagiando no colégio Anatole
France. Os longos corredores do antigo prédio, recentemente reformado, mesmo que bem iluminados causavam-na sempre certa cisma. O medo ia embora na presença de outras pessoas que todos os dias eram quase uma multidão. Alunos, professores, merendeiras, faxineiros, inspetores,
etc... Neste dia específico, não havia alunos nos corredores. As aulas foram suspensas e muitos funcionários aproveitaram para não trabalhar e voltaram para suas casas. Os corredores estavam vazios, Carla caminhava temerosa contando seus passos como quem se apega à esperança de encontrar um tesouro, rumo ao gabinete da diretora. Queria perguntar se poderia ir embora, e se aquelas horas que deveria fazer naquele dia seriam descontadas. Caminhava vacilante quando da porta de uma das salas de aula saiu um homem vestido com um guarda-pó branco, onde se lia alguma coisa no bolso do lado esquerdo do peito, mas que
ela não conseguiu ler o que era. O homem vestia luvas de procedimentos médico-cirúrgicos e trazia na mão esquerda um saco transparente que continha em seu interior um dedo indicador sujo de sangue, mas já ressecado. O homem era da perícia e assustou-se, também, ao ver uma
jovem surgindo de forma inesperada em sua frente. Para aumentar o susto do homem, Carla gritou histérica como as mocinhas em filmes de terror quando estão prestes a morrer.

O grito de Carla ecoou por todos os corredores vazios, e seu eco entrou sem pedir licença poética em todas as salas de aula. No mesmo instante que ela virou-se para o lado oposto ao qual caminhava, visando correr para se afastar do legista, deparou-se com vários outros homens. Eram policiais e outros legistas, além do inspetor do colégio e da diretora, mas, a sua mente, perturbada com o susto que acabara de levar, via apenas vários outros homens vestidos com guarda-pó portando vários outros sacos contendo indicadores. Desmaiou.

Ao acordar, a primeira imagem vislumbrada foi o rosto rotundo da diretora bem perto do seu. Dizia de forma doce seu nome enquantopassava docemente as mãos em seus cabelos. Evocava calma, mesmo naquele instante tão delicado para uma demonstração de calma, ao pegar suas mãos e tentar lhe passar força. Com todo este carinho, foi lembrando pouco a pouco a causa do desmaio. Viu, novamente, como que num flash, os homens, todos saindo ao mesmo tempo das salas do imenso corredor, cada um com um saquinho com um indicador em seu interior. Suas pupilas se dilataram e ela olhou rapidamente para todos os lados. Estava muito assustada. Mas não havia homens nem dedos indicadores decepados naquele ambiente. Tais imagens
pavorosas davam lugar a armários-arquivos, paredes com quadros que reproduziam obras de Monet, alguns vasos com belos arranjos de flores, e o tom plácido em que foram pintadas as paredes. Agora, reinava novamente a paz.

Ficou a par de tudo o que acontecera, e envergonhou-se dos risos que acabou causando aos legistas e aos policiais. Tomou um copo de água com açúcar e começou a compreender que chacinas são coisas tão comuns quanto o ar que se respira, estando em todas as partes da cidade. Mas, nada disso era motivo para desmaios, nada disso é um fato social
significativo no subúrbio.

* Em Breve: O retorno de Animalia Sensual (por El Bailaor) e o início da saga Anti-Brasil na Copa 2010 (por Adriano C. Andano).

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - 4ª Parte.

Nesta manhã Carla atravessou o pórtico de entrada da comunidade “A” e os sentinelas erguntaram-lhe o que eles haviam almoçado no dia anterior. Carla pensou um pouco e respondeu que um deles havia comido uma quentinha de ‘bife com fritas’ e o outro ‘frango com batatas’. Passou. Se acertou ou não a pergunta imbecil, não sabemos.

Carla andava pelas ruas principais da favela com o mesmo medo que sentia ao atravessar o caminho que ladeava o lixão. “Na comunidade também há urubus.” – Pensou ela ao ver que os biltres do tráfico tinham, quase todos, nariz adunco, pescoço esticado que projetava para
frente e não para o alto as suas cabeças e, o que ela considerava ser o pior, andavam todos com um andar característico que consistia em braços semi-abertos afastados do corpo, passada ritmada que provocava um movimento de sobe e desce da cabeça e, por fim, uma leve curvatura da coluna que os fazia parecer um pouco corcundas. Era, em suma, um bando de urubus.

Sozinha com o seu medo, ela andava olhando para frente ou para baixo, nunca olhava para os lados, pois evitava olhar para o interior das casas ou para os rostos das pessoas. As portas abertas das casas sempre desvelavam o que deveriam ocultar. Eram mulheres descabeladas
que passavam todo o dia cuidando das crianças e das demais tarefas da casa vestidas o dia inteiro com suas roupas de dormir. Homens sem camisa e com bermudas sempre caindo, em resultado de usarem números mais altos que os seus. Crianças sempre sujas que pareciam multiplicar de número a cada vez que desviava o olhar. E, o que era o pior de tudo, homens com bermuda caindo revelando seus pêlos pubianos junto com mulheres em roupas de dormir leves e transparentes. Realmente era melhor não olhar para dentro dos casebres.

Sentia-se sozinha, também, quando precisava desviar das motos. Muitas eram conduzidas por pais de família que ganhavam a vida levando as pessoas de um lado para o outro, mas, muitas outras eram conduzidas por olheiros, aviõezinhos e pelos garotos que eram chamados de vapor.

Nas calçadas, havia as tias que vendiam balas e doces, os tios que vendiam legumes e verduras e os garotos que faziam das ruas um mercado de negociação de drogas. Carla nunca quis acostumar-se em ver uma fila de vários fuzis encostados em fila nas paredes, como se fosse uma vitrine. Para ela, se num determinado dia acordasse e estivesse acostumada, acomodada com esta situação, o seu mundo teria acabado.

Desde que era uma garotinha bem pequena, quando sentia muito medo, cantava para espantar todos os males ao seu redor. Sempre quando passava no meio da comunidade sentia uma verdadeira necessidade de cantar. Queria cantar para esconder que estava com medo. Todos os dias sentia medo ao fazer este mesmo trajeto em direção da escola onde fazia seu estágio. Então, Carla deixou que soasse em sua cabeça uma das canções infantis que sempre cantava para as crianças em sala de aula. À medida que a letra da música dançava em sua cabeça, ouvia as vozes das crianças cantando. E, ao ouvir o som das vozes cantando a musiquinha infantil, o seu medo se dissipava, pois pensava não estar mais sozinha. É natural que assim fosse, posto que todos os medos que sentimos perduram apenas enquanto pensamos única e exclusivamente neles. Ela imaginava que qualquer pai ou mãe que precisava sair ainda de madrugada para trabalhar e tinha que deixar seus filhos sozinhos, deveria passar o dia inteiro cantando para espantar o medo que sentissem pelo bem estar de suas proles. Se bem que todos estão sozinhos quando há uma invasão da polícia, do exército ou de bandidos
de fora da comunidade.

A sorte de Carla é que, ao cantar, não percebia o quanto caminhava mais rápido e, constantemente, chegava até o Anatole em menos tempo do que se caminhasse calada, em silêncio. Ao chegar à proximidade do Anatole, percebeu que algo não estava indo bem. Havia uma movimentação muito grande de pessoas, dois carros de polícia e um rabecão dos bombeiros bem em frente da entrada principal do colégio. Foi a Ritinha, faxineira do colégio, que recebeu Carla no portão. Havia muito reboliço, muita agitação, e as coisas que Ritinha
dizia saiam atropeladas e se amontoavam, não dando tempo para que Carla entendesse bem o que havia acontecido. Tudo o que ela pôde assimilar foi que algo ruim havia acontecido. Em seu rosto, a serenidade que a música lhe deu foi sacudida pelas palavras atropeladas da Rita.

- Não vai haver aula hoje, filhinha. – Disse Rita com um sorriso amistoso, tentando se antecipar à pergunta que Carla faria inevitavelmente.
- O que aconteceu? – Perguntou Carla, deixando evidente que tudo o que
lhe foi falado anteriormente havia sido em vão.
- Eu já não lhe disse filha?

Dona Rita envolveu os ombros da jovem com os seus braços e disse, em sussurros quase inaudíveis, que dois homens foram mortos dentro do colégio durante a noite anterior. Rita revelou, também, que estavam comentando que os mortos deviam quantias irrisórias ao tráfico, e que os policiais que entraram na comunidade foram escoltados pelos abutres que estavam circulando a todo instante na frente do Anatole armados com armas que apenas especialistas sabiam o nome.

domingo, 2 de maio de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - 3ª Parte

Vencida a barreira do caminho das torres, Carla sentia medo, também, de passar pelos homens armados na entrada da comunidade “A”. Para entrar lá, qualquer pessoa, tinha de responder a perguntas que os bandidos faziam. O que era estranho é que o medo que os bandidos sentiam de serem surpreendidos por outros bandidos da comunidade vizinha, levava-os a bolarem perguntas sobre toda a sorte de coisas e de todo grau de dificuldade. Parecia que se uma pessoa fosse capaz de responder às suas perguntas, não havia a possibilidade de que tal pessoa ser um bandido.

Certa vez, um rapaz muito bonito, bem vestido e estiloso na aparência, cruzou o pórtico que havia na entrada da favela e foi parado por dois sentinelas armados, que lhes perguntaram, note só, os nomes de todos os jogadores da seleção brasileira de futebol na copa do mundo de 1970 em ordem alfabética. Os biltres ficaram boquiabertos quando o jovem, com toda a elegância do mundo, começou a alistar um a um os nomes dos jogadores. Várias pessoas que esperavam sua vez de serem alvejadas com perguntas descabidas que cerceavam seus direitos aproveitaram para entrarem na comunidade enquanto os bandidos ficaram distraídos com o grande feito memorialístico do jovem rapaz.

Lembro-me, perfeitamente, de um entregador de contas de luz que toda vez que entrava na comunidade era perguntado sobre o nome e o sobre-nome de todos os moradores que receberiam suas contas. Todos os dias o homem respondia bem no início, mas por volta do trigésimo ou do quadragésimo nome, sua memória começava a falhar. Era uma realização hercúlea conseguir gravar os nomes de 825 clientes da concessionária. Os bicheiros começaram a organizar apostas, primeiro se o homem alcançava 50 nomes, depois 70, até que quando o entregador alcançou 100 nomes, um apostador recebeu uma bela quantia em dinheiro.

Houve um dia, porém, que para surpresa de todos, o homem respondeu de forma exata todos os nomes dos clientes que moravam naquela localidade. Muitas pessoas suspeitam até hoje de alguma fraude, ou algum ato de astúcia utilizado pelo homem, mas o fato é que ele conseguiu falar os nomes de 825 pessoas. Mesmo pasmados com o grande feito do entregador, os malandros continuaram mostrando quem mandava no pedaço. Disseram ter perguntado quantos clientes receberiam suas contas e, segundo eles, a resposta exata era ‘quantos eles permitissem’. O que era verdade. O pobre homem poderia continuar tentando, mas imaginou que seria inútil ir contra a burocracia do tráfico. Voltou as costas à entrada da favela e caminhou desolado até o ponto de ônibus mais próximo. Ao avistar o seu ônibus, fez sinal com as mãos para que parasse, entrou nele e nunca mais foi visto por ninguém. Provavelmente perdeu o emprego. O fato é que outros entregadores de contas de luz surgiram, mas nenhum deles persistiu por mais de uma semana na tentativa de decorar nomes. Era por isso que ninguém na comunidade pagava luz.

Para Carla as perguntas nunca eram tão difíceis. Já lhe perguntaram muitas coisas antes. Perguntas sem nenhum cabimento, que a faziam refletir por qual motivo as pessoas se sujeitam a esta forma de cerceamento de sua liberdade. Certa vez perguntaram-lhe qual era a diferença dos termos ‘complexo’ e ‘complicado’ segundo o pensamento de Morin. Mais estapafúrdia foi a pergunta “qual o nome do conto de Borges em que um personagem diz ‘o fator estético não pode prescindir de um certo elemento de assombro’?” Desde quando selvagens que torturam e matam com requinte de crueldade conhecem a literatura de Borges?