NEGRO ROM

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INICIATIVA QUE RECONHECE A DIFERENÇA

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O Dia Que Carla Camuratti Achou Um Sorriso - 4ª Parte.

Nesta manhã Carla atravessou o pórtico de entrada da comunidade “A” e os sentinelas erguntaram-lhe o que eles haviam almoçado no dia anterior. Carla pensou um pouco e respondeu que um deles havia comido uma quentinha de ‘bife com fritas’ e o outro ‘frango com batatas’. Passou. Se acertou ou não a pergunta imbecil, não sabemos.

Carla andava pelas ruas principais da favela com o mesmo medo que sentia ao atravessar o caminho que ladeava o lixão. “Na comunidade também há urubus.” – Pensou ela ao ver que os biltres do tráfico tinham, quase todos, nariz adunco, pescoço esticado que projetava para
frente e não para o alto as suas cabeças e, o que ela considerava ser o pior, andavam todos com um andar característico que consistia em braços semi-abertos afastados do corpo, passada ritmada que provocava um movimento de sobe e desce da cabeça e, por fim, uma leve curvatura da coluna que os fazia parecer um pouco corcundas. Era, em suma, um bando de urubus.

Sozinha com o seu medo, ela andava olhando para frente ou para baixo, nunca olhava para os lados, pois evitava olhar para o interior das casas ou para os rostos das pessoas. As portas abertas das casas sempre desvelavam o que deveriam ocultar. Eram mulheres descabeladas
que passavam todo o dia cuidando das crianças e das demais tarefas da casa vestidas o dia inteiro com suas roupas de dormir. Homens sem camisa e com bermudas sempre caindo, em resultado de usarem números mais altos que os seus. Crianças sempre sujas que pareciam multiplicar de número a cada vez que desviava o olhar. E, o que era o pior de tudo, homens com bermuda caindo revelando seus pêlos pubianos junto com mulheres em roupas de dormir leves e transparentes. Realmente era melhor não olhar para dentro dos casebres.

Sentia-se sozinha, também, quando precisava desviar das motos. Muitas eram conduzidas por pais de família que ganhavam a vida levando as pessoas de um lado para o outro, mas, muitas outras eram conduzidas por olheiros, aviõezinhos e pelos garotos que eram chamados de vapor.

Nas calçadas, havia as tias que vendiam balas e doces, os tios que vendiam legumes e verduras e os garotos que faziam das ruas um mercado de negociação de drogas. Carla nunca quis acostumar-se em ver uma fila de vários fuzis encostados em fila nas paredes, como se fosse uma vitrine. Para ela, se num determinado dia acordasse e estivesse acostumada, acomodada com esta situação, o seu mundo teria acabado.

Desde que era uma garotinha bem pequena, quando sentia muito medo, cantava para espantar todos os males ao seu redor. Sempre quando passava no meio da comunidade sentia uma verdadeira necessidade de cantar. Queria cantar para esconder que estava com medo. Todos os dias sentia medo ao fazer este mesmo trajeto em direção da escola onde fazia seu estágio. Então, Carla deixou que soasse em sua cabeça uma das canções infantis que sempre cantava para as crianças em sala de aula. À medida que a letra da música dançava em sua cabeça, ouvia as vozes das crianças cantando. E, ao ouvir o som das vozes cantando a musiquinha infantil, o seu medo se dissipava, pois pensava não estar mais sozinha. É natural que assim fosse, posto que todos os medos que sentimos perduram apenas enquanto pensamos única e exclusivamente neles. Ela imaginava que qualquer pai ou mãe que precisava sair ainda de madrugada para trabalhar e tinha que deixar seus filhos sozinhos, deveria passar o dia inteiro cantando para espantar o medo que sentissem pelo bem estar de suas proles. Se bem que todos estão sozinhos quando há uma invasão da polícia, do exército ou de bandidos
de fora da comunidade.

A sorte de Carla é que, ao cantar, não percebia o quanto caminhava mais rápido e, constantemente, chegava até o Anatole em menos tempo do que se caminhasse calada, em silêncio. Ao chegar à proximidade do Anatole, percebeu que algo não estava indo bem. Havia uma movimentação muito grande de pessoas, dois carros de polícia e um rabecão dos bombeiros bem em frente da entrada principal do colégio. Foi a Ritinha, faxineira do colégio, que recebeu Carla no portão. Havia muito reboliço, muita agitação, e as coisas que Ritinha
dizia saiam atropeladas e se amontoavam, não dando tempo para que Carla entendesse bem o que havia acontecido. Tudo o que ela pôde assimilar foi que algo ruim havia acontecido. Em seu rosto, a serenidade que a música lhe deu foi sacudida pelas palavras atropeladas da Rita.

- Não vai haver aula hoje, filhinha. – Disse Rita com um sorriso amistoso, tentando se antecipar à pergunta que Carla faria inevitavelmente.
- O que aconteceu? – Perguntou Carla, deixando evidente que tudo o que
lhe foi falado anteriormente havia sido em vão.
- Eu já não lhe disse filha?

Dona Rita envolveu os ombros da jovem com os seus braços e disse, em sussurros quase inaudíveis, que dois homens foram mortos dentro do colégio durante a noite anterior. Rita revelou, também, que estavam comentando que os mortos deviam quantias irrisórias ao tráfico, e que os policiais que entraram na comunidade foram escoltados pelos abutres que estavam circulando a todo instante na frente do Anatole armados com armas que apenas especialistas sabiam o nome.

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